28 de outubro de 2006

Desde que me entendo por gente

Estupefação. Choque. Indignação. Revolta. Medo. Basta. Essas são apenas algumas das palavras que vêm sendo repetidas à exaustão nos últimos dias, depois que uma grande emissora de televisão exibiu um documentário sobre o envolvimento de crianças e adolescentes com todo tipo de crime, em especial com o tráfico de drogas.
Não vi o tal vídeo, pois no horário em que ele foi exibido eu estava acompanhando meu filho de quinze anos no primeiro show de sua banda de rock - foi lindo, fiquei muito orgulhoso. Entretanto, devido às experiências vividas nesses meus trinta e um anos – sendo dois como magistrado -, não foi difícil concluir que se mostraram crianças e jovens completamente reféns das drogas, do tráfico, da criminalidade, enfim. Também não fiz muito esforço para imaginar os discursos inflamados que se seguiram às deploráveis cenas. São sempre as mesmas frases feitas, tais como: “É hora de dar um basta”; “Resolver esse problema exige a participação da sociedade como um todo”; “É preciso investir no social para evitar que os jovens busquem no tráfico uma fonte de renda”. Como se diz por aí, desde que me entendo por gente é assim.
É evidente que não estou a dizer que as imagens vistas pelo Brasil inteiro em horário nobilíssimo do domingo são banais, ou que não refletem a realidade; tampouco que as manifestações colhidas não procedem. Não se trata disso. Quero apenas chamar a atenção para as reações de pessoas comuns, estudiosos e autoridades, todos se dizendo estupefatos, chocados, indignados, revoltados e com medo de algo que há muito faz parte do cotidiano de quase todas as cidades brasileiras, como se se tratasse de uma coisa nova, recente e ainda desconhecida. Inúmeras foram as demonstrações de completo desconhecimento da realidade e de ignorância fingida. Creio mesmo que muitos disseram o que disseram por razões de ofício, pois do cimo em que se encontram é impossível que não tenham visto algo tão grande, tão óbvio. Outros tantos, é bem verdade, foram sinceros em suas declarações. E são justamente esses que me preocupam, porquanto, embora o combate ao tráfico de drogas e à criminalidade em geral seja obrigação do Estado, a participação de toda a sociedade e principalmente das famílias é imprescindível, sobretudo porque ninguém está imune ao terrível mal das drogas e do crime. Nessa seara o maior equívoco que se pode cometer é pensar que isso só acontece com os outros.
Nem de longe quero dar lições de educação. Contudo, não posso deixar de dizer que as famílias devem acompanhar mais de perto seus jovens. Estaria eu faltando com a verdade se dissesse que me agrada sair de casa domingo à noite; mas pelo meu filho vale a pena, seja porque gosto de estar ao seu lado, seja porque busco sempre conhecer seus outros amigos – às vezes, ele pode até pensar que não, mas eu sou o maior deles. Assim fica mais fácil saber se ele realmente é quem parece ser. Decerto isso pode se revelar inócuo, mas prefiro tentar, pois acredito que a distância entre pais e filhos fortalece o equivocado pensamento de que as drogas só chegam até a casa do vizinho. Talvez por isso se diga que tem pai que é cego e que outros não vêem porque não querem. Individualidade e privacidade, quando se trata de quem está formando seu caráter, sua personalidade, são coisas que devem ser ministradas e adquiridas aos poucos, sob pena de se abrir uma grande porta para quem está sempre à espreita para atacar. Além disso, quanto mais estreito o vínculo familiar, menos vulneráveis serão seus membros.
Também não pretendo sugerir condutas a outras autoridades; seria muita pretensão, uma estupidez mesmo, até porque se presume que quem ostenta esse título sabe de suas obrigações. Todavia, devo dizer – apesar do lugar comum que condenei há pouco! - que o combate à criminalidade passa, necessariamente, pela melhor alocação dos recursos públicos e, mais ainda, pelo fechamento da torneira do desperdício e da corrupção. E que é preciso sair dos gabinetes de olhos bem abertos, pois é impossível vencer o que não se vê. Como diria um professor de antropologia que mudou minha maneira de pensar o mundo, também é preciso descolorir as lentes.
Como as minhas limitações me impediram de encontrar outro final, peço desculpas para o caso de parecer politicamente incorreto (essa não é a intenção) e afirmo: o pior cego é aquele que não quer ver; se os olhos fingem não enxergar, o coração pode sentir – e muito.
Juiz Mário Márcio de Almeida Sousa
(Artigo escrito em março de 2006)

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