20 de novembro de 2008

No texto abaixo, abordo, sucintamente, a polêmica gerada pela Lei nº 11.719/08 em torno do momento do recebimento da denúncia.

Os artigos 396 e 399 do CPP e o recebimento da denúncia

O Brasil é mesmo um país pródigo em contrariar a máxima segundo a qual “a lei não contém expressões inúteis”. E não foi diferente com a chamada “mini-reforma” do Código de Processo Penal, levada a efeito pelas leis 11.689, 11.690 e 11.719, todas de 2008.
Dentre as muitas alterações introduzidas por essas normas, decerto que uma das mais polêmicas diz com os artigos 396 e 399, cuja redação foi alterada pela Lei nº 11.719/08. Eis as respectivas transcrições:
“Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.”
“Art. 399. Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente.”
Desde a primeira hora, não poucos juristas afirmam que foram instituídos pela reforma dois momentos para o recebimento da peça acusatória: o primeiro logo após seu oferecimento (art.396); o outro, depois de apresentada a defesa preliminar (art.399). Já outros, como Lenio Luiz Streck, invocando argumentos de matriz constitucional (princípio da proibição de retrocesso, p.ex.), sustentam que “o dispositivo do art. 396 somente é constitucional se entendido no sentido de que, não rejeitada liminarmente a denúncia ou a queixa, o juiz recebê-la-á e ordenará a notificação do acusado para responder a acusação no prazo de dez dias, por escrito”.[1] Uma terceira linha, que será adiante sucintamente defendida, assevera haver apenas um momento para o recebimento da inicial da acusação: aquele do art.396 do CPP.
É bem verdade que toda essa celeuma não advém de mera “litigância acadêmica”; sua origem está, sem dúvida, no lamentável equívoco da redação do artigo 399. Contudo, essa erronia não autoriza as sobreditas interpretações.
Com efeito, não se afigura lógico que, doravante, uma mesma denúncia seja recebida por duas vezes, sobretudo porque não é isso que se pode extrair da nova sistemática. Ademais, essa duplicidade implicaria também na desnecessária discussão acerca do momento de interrupção da prescrição – atente-se que não houve alteração no artigo 117 do Código Penal.
Igualmente equivocado é afirmar que o legislador pretendeu instituir um contraditório anterior ao recebimento da denúncia, a exemplo do que já ocorre com a Lei nº 8.038/90 e a Lei nº 11.343/06. Como bem lembra Jacinto Coutinho, a Câmara dos Deputados alterou o Projeto de Lei nº 4.701/01, que deu origem à Lei nº 11.719/08, para inserir no artigo 396 a expressão “recebê-la-á”. [2] Logo, forçoso é concluir que, se desejasse criar uma fase pré-processual, assim teria feito o Parlamento. Se não o fez é porque essa não era sua intenção.
Sem embargos, a solução para o problema está na interpretação sistemática. Ou seja, os dispostvos não podem ser vistos como normas isoladas, cada um a disciplinar institutos jurídicos também estanques.
Então, se, nos termos do art.393, o processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado e, a teor do art.397, após a resposta o juiz deverá absolvê-lo sumariamente quando verificar qualquer das hipóteses nele previstas, é evidente que a denúncia somente pode e deve ser recebida num único momento, qual seja aquele do artigo 396 do CPP. Afinal, só é possível absolver quem já está sendo processado. Por outro lado, caso se aceitasse a teoria do duplo recebimento ou do recebimento somente num segundo momento (art.399), ter-se-ia que concluir não pela absolvição, mas pela rejeição da peça acusatória. E não é isso que ocorre.
Avançando nessa linha, Guilherme de Souza Nucci afirma que “inexistem ‘dois recebimentos’ da peça acusatória, nem é dado à parte (acusação ou defesa) qual deles é o mais conveniente. Não deve o juiz, por outro lado, receber outra vez a peça acusatória, após ler os argumentos da defesa prévia. Ao contrário, deve mencionar que, lidos os referidos argumentos defensivos, inexiste motivo para absolvição sumária, portanto, designa audiência de instrução e julgamentos, intimando-se o réu”.[3]
Como se vê, não há falar-se em duplo recebimento da denúncia; tampouco em recebimento apenas na fase do art.399 do CPP.
Em verdade, a denúncia deve ser recebida somente na fase do art.396 do Código de Processo Penal. E o artigo 399 do Código de Processo Penal, por sua vez, deve ser lido da seguinte forma: “na fase do art.396, caso não seja rejeitada a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente”.
[1] A jurisdição constitucional e o “duplo juízo de admissibilidade” do artigo 396 do CPP: uma solução hermenêutica. Disponível em www.leniostreck.com.br.
[2] Solução para o absurdo legal e técnico do novo art. 396 do CPP. Jornal “O Estado do Paraná”, Caderno Direito e Justiça de 20/09/2008
[3] Código de Processo Penal Comentado, 8ª ed., p.720.