16 de agosto de 2010

Lei da Ficha Limpa: inelegibilidade é pena, sim

O Brasil é, de fato, um país pitoresco. Não raro, mesmo quando busca acertar, acaba por tropeçar em fisiologismos, demagogias e, pior, na falta de planejamento e de avaliação de ações que, embora nobres e até imprescindíveis, podem ter consequências malfazejas.
Talvez o exemplo mais recente e eloquente dessa inconsequência seja a Lei Complementar nº 135/2010, a chamada Lei de Ficha Limpa, cujo escopo é “proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato”. Fruto de extraordinária e legítima pressão social, a norma veio a lume poucos meses antes das eleições e a polêmica logo se instalou. Devidamente provocados, Tribunais Regionais Eleitorais como os do Maranhão, Pará e Rio Grande do Sul corajosamente negaram aplicação plena ao novo diploma, com o argumento, dentre outros, de que inelegibilidade é pena – como se tentará demonstrar neste singelo texto. Não demorou para que fossem taxados de retrógrados, de contrários aos interesses públicos.
No julgamento do Registro de Candidatura nº 3398-21.2010.6.10.0000 – Classe 38, o relator, Juiz Magno Linhares, membro do TRE do Maranhão, assentou:
“Nesse contexto, com a máxima vênia do Ministério Público Eleitoral, filio-me ao entendimento daqueles que vislumbram a natureza das inelegibilidades decorrentes de infrações à preceitos legais como autêntica hipótese de penalidade, e não de simples conseqüência de uma condenação, afinal os efeitos punitivos decorrentes de uma infração podem ser contemplados por um ou mais textos legais, não se exigindo que estejam restritos no mesmo dispositivo ou na mesma lei.”
De modo diametralmente oposto, há quem defenda a aplicabilidade da norma a casos com condenações transitadas em julgado e até mesmo cumpridas. Vale-se tal corrente, dentre outras, da convicção de que inelegibilidade não é pena.
No voto condutor da Consulta nº 1147-09.2010.6.00.0000, o Min.Arnaldo Versiani – do Tribunal Superior Eleitoral -, ao invocar precedentes do Supremo Tribunal Federal, consignou:
“Realmente, não há, a meu ver, como se imaginar a inelegibilidade como pena ou sanção em si mesma, na medida em que a ela se aplica a determinadas categorias, por exemplo, a de juízes ou a de integrantes do Ministério Público, não porque eles devam sofrer essa pena, mas, sim, porque o legislador os incluiu na categoria daqueles que podem exercer certo grau de influência no eleitorado. Daí, inclusive, a necessidade de prévio afastamento definitivo de suas funções.
O mesmo se diga a respeito dos parentes de titular de cargo eletivo, que também sofrem a mesma restrição de elegibilidade. Ainda os inalistáveis e os analfabetos padecem de semelhante inelegibilidade, sem que se possa falar de imposição de pena.”
Com todas as vênias, o entendimento do Regional maranhense se revela mais acertado, mais consentâneo com os princípios informadores do sistema jurídico-constitucional brasileiro. Dito de modo mais específico: como as causas de inelegibilidades previstas na Lei Complementar nº 135/2010 encerram, sim, verdadeiras penalidades, a decisão do TRE do Maranhão guarda maior coerência com o princípio constitucional da irretroatividade da lei prejudicial.
De acordo com o dicionarista Antônio Houaiss, pena quer dizer “sanção aplicada como punição ou como reparação por uma ação julgada repreensível; castigo, condenação, penitência”, “sanção prevista pelo legislador e aplicada pelos órgãos jurídicos competentes”. Diante disso, mesmo que se parta do sentido literal do termo, forçoso é concluir que inelegibilidade é pena, sobretudo se considerado o fato de que a Lei Complementar nº 135/2010 impede que sejam eleitas pessoas que tenham sido condenadas por diversas modalidades de ilícitos (criminais, eleitorais, administrativos etc.).
Ora, se a inelegibilidade retira do político a possibilidade de se candidatar e, por óbvio, de se eleger, como então dizer que isso não é pena? No mais das vezes, o que importa para essas pessoas são os mandatos eletivos. Se lhes é tolhido o direito até mesmo de concorrer, então como sustentar que elas não estão sendo penalizadas?
Sempre renovando vênias, pouco importa discutir se o disposto no art.5º, incisos XL e LVII, da Constituição Federal se aplica apenas a condenações criminais, mesmo porque a norma é expressa nesse sentido. Em que pese isso, não se pode desconhecer que, no sistema de garantias constitucionais (que também informa as referidas disposições), é inegável que a ninguém pode ser aplicada pena instituída depois de fato já consumado; tampouco se podem ampliar os efeitos de condenação – seja ela de que natureza for – com base em regras posteriores à sua imposição.
Embora seja certo afirmar que não há direito adquirido a elegibilidade, cumpre reconhecer que o há em relação ao julgamento conforme e nos limites das normas (e das penas) vigentes ao tempo do fato tido por ilícito, repita-se, ainda uma vez, seja qual for a sua natureza. Do contrário, viver-se-ia num completo estado de insegurança jurídica.
Outro aspecto que revela a impossibilidade de aplicação retroativa da Lei da Ficha Limpa é o fato de que não há, ao que tudo indica, limites para essa investida contra o passado, ou seja, pouco importa quando tenha havido a condenação ou a rejeição das contas, por exemplo. Da forma como está posto o entendimento dominante, trata-se de uma regra que retroage temporalmente sem limites. Como afirma o professor Flávio Braga, trata-se de uma espécie de regressus ad infinitum. E isso não pode ser tolerado; não na ordem constitucional vigente.
E nem se cogite, por outro lado, que as chamadas inexigibilidades reflexas (parentes de chefes do Executivo e magistrados, p.ex.), serviriam para retirar o caráter de pena das inelegibilidades. Nos casos de inelegibilidades decorrentes de ilícitos, o agente não pode adotar nenhuma nova conduta para superar o impedimento, porquanto ele – impedimento – é decorrente de conduta anterior, por isso mesmo tida como ilícita pelo ordenamento jurídico e já sancionada. Em relação às condições de elegibilidade, contudo, pode o interessado adotar as providências necessárias para atendê-las, como filiar-se a partido político e fixar endereço na jurisdição para a qual pretende concorrer; os magistrados podem, por exemplo, se desligar – definitivamente - de suas funções. Quanto aos parentes de chefes do Executivo, conquanto não lhes seja possível licitamente afastar o impedimento, não se trata de punição. Trata-se, sim, de opção legislativa, como no caso da Lei de Ficha Limpa.
Nesse ponto, vale registrar que não se está a defender que a Lei da Ficha Limpa não poderia ter criado novas causas de inelegibilidade, tampouco que seja inconstitucional. Em absoluto. Afirma-se, tão-somente, que seus efeitos não podem alcançar situações consolidadas e julgadas (pouco importa se transitadas ou não) antes sua entrada em vigor.

5 de agosto de 2010

Lei da Ficha Limpa: os fins justificam os meios?

Neste ano eleitoral de 2010, o assunto mais polêmico é, sem dúvida, a Lei Complementar nº 135/2010, a chamada Lei da Ficha Limpa, resultado de intensa e inédita mobilização social, cujo objetivo é “proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato”.
Por razões óbvias, não se pode desconhecer a relevância e a conveniência da norma, sobretudo se considerado o fato de que, não raro, mandatos eletivos têm sido buscados – e, pior, alcançados – com o propósito de enriquecimento ilícito e para assegurar a impunidade de delitos de toda ordem. Não há, em sã consciência, quem seja contra extirpar da vida pública – ou impedir que nela ingressem – pessoas sem qualquer compromisso com os reais anseios da população e que ostentem condutas contrárias ao ordenamento jurídico.
Afinal, quem se dispõe a servir o povo deve, antes, respeitar as normas que, em última análise, foram concebidas por esse mesmo povo e em seu nome. Também não se pode negar que o Congresso Nacional tem, sim, legitimidade e competência para fixar tanto critérios de elegibilidade quanto de inelegibilidade. Trata-se, pois, do legítimo exercício dos poderes que lhes foram outorgados pela Constituição Federal.
Diante disso, não é desarrazoado afirma-se que inexiste antinomia entre o princípio da inocência presumida e princípio da moralidade necessária ao exercício de cargo eletivo. Ora, quem pretende conduzir os destinos de uma nação com quase duzentos milhões de habitantes não pode carregar suspeitas e muitos menos certezas de condutas tidas por ilícitas. É mais ou menos como se diz sobre a esposa daquele famoso imperador romano: não basta ser honesto, há que se parecer honesto.
Em que pese isso, se considerados – como devem ser – regras e princípios constitucionais (explícitos e implícitos), cumpre também admitir que a tão falada e desejada faxina na política brasileira não pode ser feita a qualquer custo. Por mais relevantes e nobres que sejam os propósitos da Lei da Ficha Limpa, não se pode e não se deve olvidar que as regras do jogo eleitoral não podem ser alteradas senão um ano antes das eleições , muitos menos depois de já deflagrada, ainda que informalmente, a corrida pelos cobiçados cargos eletivos contemplados na Constituição da República.
E nem se diga que a Lei da Ficha Limpa não alterou o processo eleitoral. Basta que se vejam os noticiários e as pautas dos Tribunais Regionais Eleitorais e do próprio Tribunal Superior Eleitoral para concluir que o novo diploma alterou, sim, a disputa por cargos eletivos. Tanto que muitos candidatos estão mais preocupados em defender sua inaplicabilidade para o próximo pleito que em efetivamente buscar convencer o eleitorado de que suas propostas são as melhores.
Com a devida vênia e em conclusão, não se pode deixar de registrar que o quadro atual é deplorável. Numa eleição, sobretudo do porte da brasileira, quem mais deve aparecer são os candidatos, não os magistrados
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