31 de outubro de 2006

Cautela e canja de galinha

Quando eu ainda cursava o sétimo período da faculdade de Direito da Universidade Federal do Maranhão, um colega de turma escreveu em um jornal estudantil algo mais ou menos assim: “A democracia é como uma mulher ordinária, que passamos a desprezar tão-logo a conquistamos”. Tomado pela indignação, manifestei-me afirmando que a democracia não é, nem de longe, como uma mulher ordinária. Ela é - e deverá sempre ser - como aquela que escolhemos para casar: não precisa ser pura em seu passado, mas deve ser clara e transparente quanto ao futuro que quer construir. Quem a desvirtua não é ela própria, mas sim aqueles que a conduzem com tratamento “ordinário”.
Passados quase dez anos, minha crença no “governo do povo” não apenas se manteve, ela cresceu, assim como a convicção de que há muito ordinarismo por aí. Embora muitos digam que o Brasil ainda caminha a passos lentos rumo à democratização plena, penso que alcançamos, sim, um elevado nível de democracia. Mais que isso: acredito que a plenitude é inalcançável e é bom que assim seja, pois nessa seara o aprimoramento e a evolução devem ser constantes, sobretudo porque as pessoas e os tempos mudam. Para ficar apenas em um exemplo do nosso atual estágio democrático – aquele que de fato interessa às breves reflexões que pretendo desenvolver -, cito a liberdade de expressão e o tão falado nepotismo. É bem verdade que aqui e acolá ainda se vêem algumas tentativas de censura. Mas, ainda assim, ninguém pode deixar de reconhecer que no Brasil se fala de tudo, de todos e de qualquer modo, mesmo quando não se entende bulhufas daquilo que se está a comentar, mesmo quando não se tem nenhuma prova do que se está a dizer, mesmo quando não se acredita naquilo que se está a defender.
No caso da Resolução nº 07 do Conselho Nacional de Justiça, que sepultou o nepotismo no Poder Judiciário, como já era de se esperar, brotaram manifestações de apoio as mais exaltadas e, como não poderia deixar de ser, muitas delas partiram de premissas absolutamente equivocadas e outras tantas de intenções pouco nobres. Quem tem um mínimo conhecimento dos fundamentos da Constituição e do Estado brasileiros não pode jamais argumentar que a decisão do chamado “Conselhão” foi despropositada. Como estava decerto não poderia ficar. Todavia, não temo dizê-la exagerada, como igualmente exagerada é a proposta contra o chamado nepotismo cruzado ou transnepotismo.
Antes que alguns me recomendem à forca, explico-me.
Quando me casei, há quase cinco anos, meu sogro já havia sido deputado federal e secretário estadual, bem como ocupado inúmeros cargos na Administração Pública. Em todas essas atividades, sempre carregou consigo a marca indelével da probidade e da competência, tanto que gozou e ainda goza de prestígio e respeito mesmo dentre aqueles que pertencem a grupos políticos diversos. Em que pese isso, se vingarem os discursos eleitoreiros e demagógicos que se ouvem por aí, minha realização profissional representará o fim da carreira pública do meu sogro. Seria um completo absurdo!
Com efeito, não se pode perder de vista que na organização político-administrativa do Estado brasileiro há um sem número de cargos eminentemente políticos e, por isso mesmo, providos sem a necessidade de concurso público. E que há famílias inteiras de homens e mulheres públicos com carreiras completamente independentes e que ficarão alijados do processo de condução dos rumos da nação se tudo caminhar no sentido atual. Seria justo? Seria razoável? Penso que não. Melhor seria disciplinar com rigor a matéria, mesmo porque a opinião pública já revelou o que pensa e combateria firmemente abusos como aqueles dantes cometidos.
De mais a mais – já diria um caro amigo -, como no exercício do poder quase nunca se constroem relações leais e sinceras, estaria eu faltando com a verdade se dissesse que não gostaria de contar com alguém da minha família – e, portanto, da minha absoluta confiança – para me acompanhar caso eu ocupe outros cargos na carreira. E não venham alguns com essa conversa de que os parentes devem ser substituídos por pessoas dos quadros da Administração. Confiança é confiança. Que se mudem então a nomenclatura, a natureza e o regramento dos cargos.
O assunto é polêmico e tenho consciência da repercussão que podem ter minhas opiniões, especialmente porque sou um jovem magistrado e o espaço não comporta discussão mais aprofundada. Mas acredito no debate e por isso resolvi externar o que penso. Torço apenas para que a discussão seja situada no campo das idéias e que oportunistas de plantão delas não se valham para auto-promover-se ou para me achincalhar.
O país prescinde de discursos vãos e mentes idem. É hora de cautela – e canja de galinha, se der.
Em tempo: lei é lei e eu sou magistrado. E, para o bom entendedor, meia palavra basta.
Juiz Mário Márcio de Almeida Sousa
(Artigo escrito em março de 2006)

28 de outubro de 2006

Os condomínios e o novo Código Civil

O novo Código Civil, que entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2003, operou significativas modificações na disciplina dos condomínios. A Lei n0 4.591/64 – Lei de Condomínios e Incorporações -, que continua vigendo, teve muitos de seus dispositivos substituídos pela Lei n0 10.406/2002 (novo Código Civil). No mundo jurídico, quando isso ocorre, diz-se que houve derrogação tácita: a disposição posterior é incompatível ou colidente com a que antes vigorava e, por isso, esta última deixa de valer mesmo sem que uma faça qualquer referência à outra.
Nessa seara, dentre as inovações mais importantes e polêmicas destacam-se aquelas relativas às multas a serem impostas aos condôminos que não cumprirem seus deveres perante o condomínio.
Na parte em que trata das contribuições mensais, a nova Lei Civil passou a dispor que “o condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, os de um por cento ao mês e multa de até dois por cento sobre o débito” (art.1336, § 10). Isso quer dizer que, atualmente, os condomínios podem cobrar juros moratórios superiores a 1%, mas não multas superiores a 2% quando a cota mensal não for paga na data de vencimento.
Antes, os juros moratórios eram limitados a 1% ao mês e a multa pelo pagamento da cota mensal após o vencimento poderia ser de até 20% sobre o débito, desde que assim previsse a convenção. Isso ocorria por força do disposto no artigo 12, § 30, da Lei n0 4.591/64 – Lei de Condomínios e Incorporações. Mas há quem diga que mesmo tendo o novo Código liberado a taxa de juros, permanece a obrigação de se observar a Lei de Usura, que limita os juros a 1% ao mês, e a Constituição Federal, que os limita em 12% ao ano. Eis aqui uma importante questão a ser decidida pelos nossos Tribunais.
De acordo com o Deputado Federal Ricardo Fiuza, Relator-Geral do novo Código Civil na Câmara dos Deputados, a redução da multa por inadimplemento fez-se necessária para harmonizar a nova Lei com o Código de Defesa do Consumidor, que, em seu artigo 52, § 10, dispõe que “as multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigação no seu termo não poderão ser superiores a 2% do valor da prestação”.
Inúmeras são as críticas contrárias a essas alterações.
Do ponto de vista socioeconômico, destacam-se as formuladas por aqueles que, assim como eu, pensam que a drástica redução da multa fomentará a impontualidade, beneficiando os maus pagadores e, obviamente, prejudicando os bons, que deverão suportar os ônus decorrentes das faltas alheias. Os síndicos e os administradores de imóveis estão deveras preocupados – e com razão!
Da perspectiva jurídica, as críticas se erguem sobre o argumento de que as relações entre o condomínio e os condôminos não podem ser consideradas como de consumo. Essa corrente de pensamento – à qual também me filio – conta com a adesão de juristas ilustres, como o Professor Carlos Alberto Dabus Maluf, para quem “as despesas originadas do condomínio edilício, que devem ser suportadas pelos condôminos, não podem ser consideradas relações de consumo, mas pagamento de serviços prestados por terceiros ao condomínio, não se aplicando, por conseguinte, as regras do Código de Defesa do Consumidor”.
Há ainda muita divergência no campo jurídico quanto à necessidade de se reduzir, de logo, a multa por inadimplemento para o percentual estipulado pela nova Lei. Alguns afirmam que não mais podem ser cobradas multas superiores a 2%; outros, como eu, sustentam que prevalecem as convenções que impõem percentual maior que 2%, dependendo sua redução da aprovação dos condôminos. O mesmo se diga em relação aos juros moratórios, que hoje podem ser superiores a 1%.
O novo Código Civil também inovou ao prescrever que a convenção ou o ato constitutivo do condomínio podem contemplar multa de até cinco vezes as contribuições mensais para os condôminos que: realizarem obras que comprometam a segurança da edificação; alterarem a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias externas; não derem às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes (art.1336, § 20).
A primeira parte (caput) do artigo 1337 da atual Lei Civil, por sua vez, dispõe que o condômino, ou possuidor, que repetidas vezes não cumprir com os seus deveres perante o condomínio poderá ser obrigado a pagar multa de até cinco vezes o valor atribuído à contribuição mensal. A aplicação dessa multa depende da deliberação de pelo menos três quartos dos condôminos restantes.
Já o parágrafo único desse mesmo artigo estabelece que o condômino, ou possuidor, que mantiver comportamento anti-social e, por isso, gerar incompatibilidade de convivência com os demais condôminos, ou possuidores, poderá ser compelido a pagar multa de até dez vezes o valor da cota mensal, até ulterior deliberação da assembléia. Aqui também será necessária a aprovação de pelos menos três quartos dos condôminos restantes.
Os artigos 1336 e 1337 têm origem e fundamento, dentre outros, no artigo 21 da Lei n0 4.591/64, segundo o qual “a violação de qualquer dos deveres estipulados na convenção sujeitará o infrator à multa fixada na própria convenção ou no regimento interno, sem prejuízo da responsabilidade civil ou criminal que, no caso, couber”. E como este antigo dispositivo, aqueles também possibilitam que o condômino faltoso seja condenado a reparar as perdas e os danos a que der causa.
A crítica que se faz às multas cuja aplicação depende da deliberação de muitos condôminos decorre da constatação de que dificilmente uma assembléia de condomínio alcança quórum superior a cinqüenta por cento. Soma-se a isso, ainda, o constrangimento que pode acometer alguns condôminos quando tiverem que decidir pela aplicação de uma penalidade tão rigorosa contra um vizinho, pouco importando o quão chato, impontual e encrenqueiro ele seja.
Para alguns estudiosos, o legislador brasileiro também laborou em equívoco ao consignar no parágrafo único do artigo 1337 a expressão “comportamento anti-social”, porquanto esta seria vaga e sujeita a conceitos os mais variados. Concordo em parte com esse posicionamento, sobretudo porque aquilo que me é correto pode não sê-lo para o meu vizinho. Entretanto, não se pode perder de vista que há comportamentos que são incontestavelmente anti-sociais, como, por exemplo, o daquele indivíduo que costuma ofender e agredir os vizinhos sempre que estes lhe pedem para ouvir música em um volume mais baixo.
Ainda em relação ao chamado “comportamento anti-social”, é oportuno registrar que, ao contrário do que vêm divulgando alguns operadores do Direito, o novo Código Civil não permite a expulsão do condômino cuja conduta venha a ser considerada como tal. E nem poderia ser diferente, levando-se em conta os dispositivos da Constituição Federal e do próprio Código Civil que protegem o direito de propriedade e o direito de ir e vir. Na verdade, o que pode ocorrer é que um condômino seja tão penalizado por seu comportamento que se veja obrigado a se desfazer de seu imóvel para quitar o débito daí decorrente. E isso pode ocorrer por vontade sua ou por determinação judicial.
Por fim, é importante destacar que a aplicação das multas previstas nos artigos 1336, § 20, e 1337 pode ocorrer mesmo naqueles condomínios que já tinham regras próprias à época da entrada em vigor do novo Código Civil, desde que, é claro, a assembléia assim decida e seja observado o quórum necessário para cada caso. Isso porque, essas hipóteses, a nova Lei não menciona previsão convencional, mas apenas deliberação de certo número de condôminos. Mas essa não é uma opinião unânime, pois há quem diga que esses dispositivos somente poderão ser aplicados se a convenção for alterada para esse fim.
Divergências à parte, o fato é que o novo Código Civil já está em vigor, com todas as suas qualidades e imperfeições. E decerto que nos cabe cumpri-lo. Todavia, não sem tentar compreendê-lo, de modo a auxiliar no seu aperfeiçoamento. Aos Tribunais brasileiros, por sua vez, cumpre interpretá-lo e aplicá-lo, fixando-lhe os conceitos e o alcance. Já aos nossos Congressistas convém fazer com que a nova Lei acompanhe, tanto quanto possível, as vertiginosas mudanças pelas quais passa nossa sociedade.
Oxalá tudo isso ocorra – e sem demora!
* Juiz Mário Márcio de Almeida Sousa

(Artigo elaborado no ano de 2003, quando o autor ainda era Assessor Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão)

Breves considerações sobre o novo Código Civil e seus reflexos nos Direitos Penal e Processual Penal

Dentre as muitas inovações trazidas pelo novo Código Civil, decerto que a redução da maioridade civil para dezoito anos é uma das mais importantes, seja do ponto de vista sociológico, porque expande os horizontes dos jovens que venham a atingí-la, conferindo-lhes novos direitos e obrigações, seja sob a ótica jurídica, porquanto repercutirá em outros ramos do Direito.
Nesse último caso, merecem especial destaque os reflexos que o novo diploma legal produz ou poderá produzir nas searas do Direito Penal e do Direito Processual Penal. E, como alguns desses reflexos, acaso se verifiquem, poderão resultar numa situação mais benéfica para os acusados de crimes, o tema se torna ainda mais tormentoso, sobretudo diante do recrudescimento incessante da violência.
Para o Professor Luiz Flávio Gomes, a redução da maioridade civil não produzirá efeitos no campo penal, pois institutos como o da atenuante (CP, art.65, inc.I) e da prescrição pela metade (CP, art.115), por exemplo, não deixarão de beneficiar os maiores de 18 anos e menores de vinte e um. Já no campo do Direito Processual Penal, esse renomado jurista defende que a redução acabou por revogar tacitamente os dispositivos que consideravam o menor de 21 anos relativamente incapaz, pois, estes, sim, “teriam por base a capacidade do ser humano para praticar atos civis e, por conseguinte, pessoais”. É o caso, por exemplo, do curador para réus menores de 21 anos, cuja nomeação tornou-se desnecessária. Essa também é a opinião de Guilherme de Souza Nucci.
Como não poderia deixar de ocorrer em um debate jurídico, há quem pense de modo diverso.
De acordo com o Procurador da República Marcus Vinicius de Viveiros Dias, “não é mais aceitável que os réus menores de 21 anos tenham o prazo prescricional reduzido de metade” ou mesmo “façam jus a uma circunstância atenuante genérica prevista no artigo 65, inciso I, do Código Penal”. Segundo ele, “com a maioridade civil e penal coincidindo nos 18 anos, não há qualquer razão para distinção entre os réus maiores e os menores de 21, já que a idade que deve figurar como ‘fiel da balança’ é a de 18 anos”.
Na senda processual, o conceituado Procurador comunga da opinião do Professor Luiz Flávio Gomes, qual seja a de que o novo Código Civil tem aplicação imediata, uma vez que nesse ramo jurídico certos atos somente podem ser praticados isoladamente por aqueles que detêm capacidade civil plena.
Modestamente – e por enquanto -, filio-me ao entendimento de que na esfera penal a redução da maioridade civil não retira dos réus maiores de dezoito e menores de vinte e um anos o direito à aplicação da atenuante ou ao prazo prescricional reduzido, por exemplo. E o faço por pensar que tais benefícios não guardam qualquer relação com a capacidade para praticar atos civis, mas sim com a fortaleza psicológica do indivíduo e com sua capacidade de suportar uma reprimenda que, por vezes, pode ser muito severa.
Por outro lado, não tenho dúvidas de que a redução em comento atinge diretamente o processo penal, fazendo com que deixem de existir institutos como o do curador e da dupla titularidade do direito de queixa quando a vítima for maior de 18 anos e menor de 21. Nem poderia ser diferente, pois aqui o que se considera é a capacidade do indivíduo de praticar atos da vida civil, agora adquirida aos 18 anos.
Também estou certo de outra coisa: dada a complexidade da matéria, bem como seus reflexos no meio social, faz-se necessário que o legislador brasileiro adote urgentes medidas no sentido de harmonizar o novo Código Civil com o restante do ordenamento jurídico brasileiro, em especial com a Constituição Federal.
Como foi dito antes, o tema é tormentoso e, por isso, ainda serão necessários muitos debates para sua melhor compreensão. E é exatamente esse o propósito dessas singelas linhas: instigar a discussão, de modo a ajudar na realização da Justiça e da pacificação social.
Ao debate, Senhoras e Senhores!
* Juiz Mário Márcio de Almeida Sousa
(Artigo escrito em 2003, quando o autor ainda era assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão)

Breves considerações sobre o novo Código Civil e os institutos do estado de perigo e da lesão

No dia 06 de março de 1999, tive a grata satisfação de publicar em um jornal local artigo sobre os chamados contratos de adesão, que são aqueles “cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo” (art. 54 do Código de Defesa do Consumidor). Como exemplos, citei os contatos bancários, de seguros e planos de saúde.
Naquela oportunidade, referi-me também aos artigos 60 e 51 do Código de Defesa do Consumidor e afirmei que, ao contrário do que pensam alguns consumidores e, mais ainda, ao contrário do que querem entender alguns doutrinadores, sempre que as cláusulas de um contrato relativo ao fornecimento de produtos ou serviços acarretarem, devido a fatos supervenientes, encargos excessivos ao consumidor, ou, de outro modo, encaixarem-se no conceito de cláusulas abusivas, a lei assegura sua modificação, no primeiro caso, ou a decretação de sua nulidade, isto é, a decretação de que não têm força alguma, no segundo.
Passados seis anos da citada publicação, alegra-me ocupar este espaço para dizer ao leitor que o novo Código Civil, seguindo a trilha do Código de Defesa do Consumidor, contemplou expressamente dois institutos de grande valia, tanto para os consumidores, quanto para os contratantes em geral: o estado de perigo e a lesão. E o fez como forma de dar efetividade aos princípios da função social do contrato, da boa-fé e da probidade, também expressamente consagrados na nova Lei Civil (arts.421 e 422).
De acordo com o artigo 156 do novo Código, “configura-se o estado de perigo quando alguém, premido de extrema necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa”. Já o parágrafo único do mesmo artigo dispõe: “Tratando-se de pessoa não pertencente à família do declarante, o juiz decidirá segundo as circunstâncias”.
Em termos práticos, significa dizer que, a partir de 11 de janeiro de 2003, tornou-se legalmente possível aos contratantes, consumidores ou não, pedir a anulação judicial de negócios excessivamente desvantajosos que tenham sido celebrados com o objetivo de salvar a si, a pessoa de sua família ou mesmo a um terceiro, sendo que, neste último caso, a anulação dependerá de uma análise mais rigorosa por parte do juiz.
Mas é importante esclarecer: não basta que o contratante venha a pensar ou mesmo perceber que fez um mau negócio ou, ainda, que, aos seus olhos, a outra parte tenha feito um “negócio da China”. Nos termos da norma atual, é preciso que esse trato tenha sido celebrado com uma urgência tal que não seja possível à parte atentar para os prejuízos ou encargos excessivos que pode vir a ter, ou, em os vislumbrando, não lhe seja possível negociar melhor, sob pena de não poder salvar a si, a pessoa de sua família ou a um terceiro.
Além disso, é necessário restar comprovado que, ao tempo da negociação, a parte que mais se beneficiou sabia da premente necessidade da outra. Há que se destacar, por fim, que a anulação de um negócio feito em estado de necessidade somente pode ocorrer através de uma ação judicial, sendo que, de acordo com os Professores Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, “passado o perigo, sob cuja iminência foi feito o negócio jurídico, nada impede que o declarante confirme sua declaração, convalidando o negócio jurídico que deixará de ser anulável”.
Exemplo de negócio celebrado em estado de necessidade: um pai que vende seu carro por um preço muito abaixo do de mercado para uma pessoa que sabe que o dinheiro será usado no pagamento de uma cirurgia de emergência a que deverá se submeter o filho do vendedor.
A lesão, por sua vez, está inserta no artigo 157 do atual Código Civil e “ocorre quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga à prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação da outra parte”.
Muito semelhantes, os institutos do estado de perigo e da lesão têm como maior diferencial o fato de que para a configuração deste último não é necessário que a parte mais beneficiada tenha ciência da necessidade ou da inexperiência da outra, ou seja, basta que um dos contratantes fique em excessiva desvantagem para se tornar possível a anulação do negócio. Entretanto, “não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito” (art.157, parágrafo segundo).
Exemplo de negócio em que se configura o instituto da lesão: financiamentos de veículos que venham a se tornar impagáveis devido à excessiva alta dos índices pactuados para reajuste de suas parcelas.
Com se vê, após a entrada em vigor do novo Código Civil, os contratantes brasileiros, consumidores ou não, passaram a contar com mais dois importantes instrumentos legais contra pessoas físicas e/ou jurídicas que venham a tentar auferir vantagens através da exploração de sua necessidade ou de sua inexperiência.
Alvíssaras ao legislador brasileiro!
* Juiz Mário Márcio de Almeida Sousa

(Artigo escrito em 2003, quando o autor ainda era assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão)

O novo Código Civil e a possibilidade de mudança do regime matrimonial

O regime matrimonial é o instituto jurídico que rege as relações patrimoniais dos cônjuges. Através dele, buscam os consortes a proteção dos seus bens, comuns e/ou individuais, durante a constância do casamento e após a sua dissolução.
O artigo 230 do Código Civil de 1916 – que já não vigora - dispunha que o regime de bens era irrevogável, isto é, uma vez celebrado o casamento, os cônjuges não mais poderiam alterá-lo, pouco importando se sua estipulação tivesse decorrido de convenção ou de imperativo legal (em alguns casos, o Código antigo impunha e o novo ainda impõe o regime, independentemente da vontade do casal).
De acordo com o Professor Sílvio de Salvo Venosa, a imutabilidade do regime matrimonial tinha por objetivo resguardar os direitos dos consortes e de terceiros, pois, “no curso da vida conjugal, um dos cônjuges poderia fazer prevalecer indevidamente sua vontade para alterar o regime, em detrimento do outro ou de credores”. À época de sua instituição, essa proibição era de grande valia, sobretudo porque, naquele momento histórico, o Brasil ostentava uma sociedade permeada pelo ideário machista, restringindo-se à mulher um papel secundário.
Aos olhos da Lei, o homem era o “chefe da sociedade conjugal” e, por isso, muitas mulheres viviam uma espécie de jugo, limitando-se a fazer e a deixar de fazer somente aquilo que convinha a seus maridos. Nesse contexto, era realmente necessário que o legislador presumisse que a possibilidade de alteração do regime de bens poderia causar prejuízos a um dos cônjuges, especialmente à mulher.
Mas isso mudou. O processo de emancipação feminina - que, do ponto vista legal, culminou com a Constituição Federal de 1988 (mulheres e homens são iguais em direitos e obrigações) - aboliu esse papel de coadjuvante, que era indevidamente conferido às mulheres no complexo cenário social. Hoje, o que se vê é sua efetiva e valorosa participação em todos os setores da sociedade, da administração da entidade familiar até a condução dos mais altos postos da nação.
Daí que, atento às mudanças havidas na sociedade e empurrado pela brisa benfazeja da evolução, o legislador brasileiro também contemplou no novo Código Civil a igualdade entre homens e mulheres, em especial no seio familiar, ao estabelecer que a direção da sociedade conjugal será exercida por ambos os cônjuges (art.1567). Na mesma trilha, possibilitou a alteração do regime de bens após o casamento. Agora, por força do disposto no artigo 1639, § 20, da nova Lei Civil, “é admissível a alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”.
À primeira vista, a inovação parece simples. Mas, dadas as conseqüências que podem advir do exercício do direito nela contido, alguns esclarecimentos se fazem necessários.
De acordo com o novo texto legal, a alteração do regime de bens não pode se dar por iniciativa de apenas um dos cônjuges, ou seja, se a mulher não concordar com a mudança, o marido nada pode fazer – e vice-versa. Essa foi a forma encontrada pelo legislador para não fomentar demandas entre cônjuges.
Além disso, é importante ressaltar que não basta que o casal concorde em alterar o regime matrimonial. É imprescindível, pois, que essa pretensão seja submetida à apreciação de um Juiz de Direito, que, além de analisar a relevância das razões que ensejaram o pedido, deverá certificar-se de que o seu deferimento não resultará em prejuízos a terceiros ou mesmo a um dos consortes. Essa foi a forma encontrada pelo legislador para evitar fraudes e pressões contra a parte mais fraca da relação, quer seja do ponto de vista econômico, quer do psicológico.
Outro ponto que merece destaque é o relativo à possibilidade de alteração do regime de bens em casamentos celebrados antes da entrada em vigor do atual Código Civil, que se deu no dia 11 de janeiro de 2003.
Alguns renomados juristas entendem que essa alteração não pode ser deferida àqueles que se casaram até o dia 10 de janeiro de 2003, devido aos institutos do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. Já outros defendem que qualquer casal pode pleitear em juízo a modificação do regime matrimonial, independentemente da data do enlace.
Ao nosso sentir, afigura-se mais coerente possibilitar a todos a alteração do regime de bens, pouco importando a data de celebração do casamento. Afinal, como se trata de questão eminentemente patrimonial, deve prevalecer a vontade das partes, respeitadas, é claro, as disposições legais mencionadas acima. Com efeito, defender posicionamento contrário seria o mesmo que negar o exercício dos direitos conferidos pela Lei do Divórcio às pessoas que se casaram antes de sua entrada em vigor. E isso não ocorre.
Com a palavra os Tribunais brasileiros.
* Juiz
Mário Márcio de Almeida Sousa
** Rafael Lima da Costa - Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA
(Artigo escrito em 2003, quando os autores ainda eram, respectivamente, assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão e estudante do 7º período do curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão)

Onde está a razão?

De acordo com o dicionarista Pedro Nunes, senso comum “é a faculdade inata em quase todos os homens normais, de julgar e proceder segundo os ditames da razão”.
Pois bem. Hoje, nos quatro cantos do mundo, não há um único homem dotado de senso comum que não seja capaz de perceber que o real interesse dos americanos com a guerra contra Saddam Hussein é a importantíssima reserva de petróleo iraquiana e que a libertação daquele árido país e de seu povo é apenas mais um argumento falacioso advindo lá das bandas do Tio Sam.
Particularmente, acredito que George W. Bush e seus asseclas dispensem alguma atenção aos graves problemas sociais e políticos que afligem aquele pobre - e ao mesmo tempo tão rico – país das arábias. Por outro lado, não tenho dúvidas de que essa preocupação é residual, isto é, após a nefasta guerra que hoje assistimos em tempo real, a eventual ajuda americana ao povo do Iraque consistirá apenas numa espécie de retribuição pelo domínio dos campos de petróleo e conseqüente “americanização” da economia da terra das mil e uma noites.
- Mas isso tudo é muito óbvio! - devem estar afirmando o leitor e a leitora.
E eu concordo. Mas não é exatamente sobre essa questão que estou pensando. Na verdade, o que também me preocupa no momento é o modo como a violência vem sendo usada, cada vez mais, para que se façam valer até mesmo interesses tidos como legítimos por seus titulares.
Num passado que não sei exatamente a que distância fica, alguém disse que a violência é a arma dos ignorantes, dos despreparados intelectualmente. Com o passar dos tempos, essa idéia foi tomando corpo e, nos dias que correm, tem servido como argumento para tentar-se impedir ou pelo menos minimizar os efeitos extremamente danosos que certamente produzirá a guerra que os Estados Unidos e o Reino Unido insistem em travar contra o Iraque.
Mas, infelizmente, essa regra, como qualquer outra, não é absoluta. As recentes imagens dos protestos ao redor do mundo contra o conflito multimídia demonstram bem que a violência não é utilizada apenas como instrumento para a concretização das idéias e dos ideais dos tiranos, dos ditadores e dos falsos estadistas que ainda teimam em habitar nosso planeta.
Em toda parte, o que se vê são jovens e até mesmo adultos valendo-se da violência para dizer não ao conflito. Pessoas que se dizem a favor da paz agridem covardemente aquelas que apoiam – um tanto insensatamente, é certo – o uso de força militar contra o regime de Saddam. E o mais grave é que o fazem crentes de que sua luta, essa sim, é legítima.
Vendo discursos e atitudes tão paradoxais, pergunto-me: onde está a razão?
Ora, por mais pacifistas que sejamos, não podemos deixar de reconhecer que os EUA contam com uma razoável - eu disse razoável – legitimidade quando tentam destituir um governante que representa verdadeira ameaça para os americanos e até mesmo para o mundo. Eis que surge, então, outra pergunta: será que o meio escolhido por Bush e Blair é o mais indicado? E o preço em vidas humanas, valerá a pena? Creio que não.
Por outro lado, também é certo que pacifistas e pseudopacifistas têm a seu favor o igualmente legítimo argumento de que uma guerra não é a melhor solução para nada e que umas poucas nações não podem se sobrepor aos interesses de quase todas as outras Nações Unidas. Mas aqui também cabem perguntas: será que protestos violentos contribuem para alcançarmos a paz? Ou será que essa incapacidade de viver sem violência - mesmo quando o que se busca é a paz – já faz parte da natureza humana? A esses questionamentos eu não ouso responder.
Mas uma coisa eu afirmo: ninguém está com a razão! E nem poderia ser diferente, pois, como bem assentou o escritor alemão Schiller, “a violência é sempre terrível, mesmo quando a causa é justa”.
Juiz Mário Márcio de Almeida Sousa
(Artigo elaborado em 2003, quando o autor ainda era assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Maranhão)

Respeitemos os números

Confesso que não sou bom com números. Nunca fui. Tanto que no vestibular – prestado para a Universidade Federal do Maranhão – não tive grande êxito nas chamadas ciências exatas. Felizmente, fui muito bem nas matérias que de fato interessavam ao curso pretendido – Direito. Passei.
Apesar dessa deficiência, nunca deixei de reconhecer a importância dos números e dos cálculos que deles se valem. Até hoje me pego fazendo contas para exercitar o cérebro. E, por incrível que pareça para alguns, foi justamente devido a essa minha predileção pelas ciências humanas que pude aprender que não é possível vivermos sem números, sem cálculos. Tudo são algarismos, equações, probabilidades, estatísticas etc.
Partindo dessa nada original constatação e seguindo ao que interessa, afirmo que devemos mais respeito aos números. Mais que isso: precisamos dispensar total reverência, verdadeira veneração, mesmo, aos números.
Diariamente, vemos gestores públicos de todas as esferas justificando a insuficiência ou a inexistência de políticas públicas com o alquebrado, desgastado, vil e falso argumento da falta de recursos. E dizendo que seria necessário tanto para isso, tanto para aquilo. E haja números! Não raro, essas falácias nos são impostas no mesmo espaço de mídia em que se revelam superávits, aumentos de produção, pesquisas mostrando que o Brasil é o maior produtor mundial disso e maior exportador daquilo.
Ora, comprem-me um bode! (Sempre quis usar esta expressão, embora até hoje não saiba muito bem o que ela significa)
Basta de lorota. Chega de tentar tapar o sol com um biquíni fio-dental feito de tela de peneira.
Àqueles que tanto se valem dos números para tentar justificar sua inação, sua incompetência, sua falta de compromisso com o Público, enfim, faço uma proposta. Não! Apresento um desafio: usemos esses mesmos números para encontrar a equação e o resultado que tire milhões de brasileiros da miséria; façamos cálculos e mais cálculos para estabelecer quanto tempo e quanto dinheiro serão necessários para isso; proponhamos ao povo que se engaje nesse mega-projeto aritmético; revertamos os bilhões gastos com publicidade governamental e coisas supérfluas para esse fim, isto é, para esse início de construção de um país melhor, mais justo, mais igual.
Não tenho dúvidas de que a adesão só não será total porque os usurpadores da pátria decerto pensarão que estão prestes a perder as únicas coisas que dão sentido às suas medíocres vidas: a possibilidade de manipular números e cálculos e, por conseqüência, desconsiderar e desprezar vidas e sonhos, como se zeros à esquerda fossem; e de fazer com que tais zeros somente tenham relevância quando se revertem em dígitos à direita dos saldos de suas contas bancárias – sejam elas reais, fantasmas ou alaranjadas.
É apenas isso que proponho: respeitemos os números! Respeitem o povo brasileiro!
Juiz Mário Márcio de Almeida Sousa

Desde que me entendo por gente

Estupefação. Choque. Indignação. Revolta. Medo. Basta. Essas são apenas algumas das palavras que vêm sendo repetidas à exaustão nos últimos dias, depois que uma grande emissora de televisão exibiu um documentário sobre o envolvimento de crianças e adolescentes com todo tipo de crime, em especial com o tráfico de drogas.
Não vi o tal vídeo, pois no horário em que ele foi exibido eu estava acompanhando meu filho de quinze anos no primeiro show de sua banda de rock - foi lindo, fiquei muito orgulhoso. Entretanto, devido às experiências vividas nesses meus trinta e um anos – sendo dois como magistrado -, não foi difícil concluir que se mostraram crianças e jovens completamente reféns das drogas, do tráfico, da criminalidade, enfim. Também não fiz muito esforço para imaginar os discursos inflamados que se seguiram às deploráveis cenas. São sempre as mesmas frases feitas, tais como: “É hora de dar um basta”; “Resolver esse problema exige a participação da sociedade como um todo”; “É preciso investir no social para evitar que os jovens busquem no tráfico uma fonte de renda”. Como se diz por aí, desde que me entendo por gente é assim.
É evidente que não estou a dizer que as imagens vistas pelo Brasil inteiro em horário nobilíssimo do domingo são banais, ou que não refletem a realidade; tampouco que as manifestações colhidas não procedem. Não se trata disso. Quero apenas chamar a atenção para as reações de pessoas comuns, estudiosos e autoridades, todos se dizendo estupefatos, chocados, indignados, revoltados e com medo de algo que há muito faz parte do cotidiano de quase todas as cidades brasileiras, como se se tratasse de uma coisa nova, recente e ainda desconhecida. Inúmeras foram as demonstrações de completo desconhecimento da realidade e de ignorância fingida. Creio mesmo que muitos disseram o que disseram por razões de ofício, pois do cimo em que se encontram é impossível que não tenham visto algo tão grande, tão óbvio. Outros tantos, é bem verdade, foram sinceros em suas declarações. E são justamente esses que me preocupam, porquanto, embora o combate ao tráfico de drogas e à criminalidade em geral seja obrigação do Estado, a participação de toda a sociedade e principalmente das famílias é imprescindível, sobretudo porque ninguém está imune ao terrível mal das drogas e do crime. Nessa seara o maior equívoco que se pode cometer é pensar que isso só acontece com os outros.
Nem de longe quero dar lições de educação. Contudo, não posso deixar de dizer que as famílias devem acompanhar mais de perto seus jovens. Estaria eu faltando com a verdade se dissesse que me agrada sair de casa domingo à noite; mas pelo meu filho vale a pena, seja porque gosto de estar ao seu lado, seja porque busco sempre conhecer seus outros amigos – às vezes, ele pode até pensar que não, mas eu sou o maior deles. Assim fica mais fácil saber se ele realmente é quem parece ser. Decerto isso pode se revelar inócuo, mas prefiro tentar, pois acredito que a distância entre pais e filhos fortalece o equivocado pensamento de que as drogas só chegam até a casa do vizinho. Talvez por isso se diga que tem pai que é cego e que outros não vêem porque não querem. Individualidade e privacidade, quando se trata de quem está formando seu caráter, sua personalidade, são coisas que devem ser ministradas e adquiridas aos poucos, sob pena de se abrir uma grande porta para quem está sempre à espreita para atacar. Além disso, quanto mais estreito o vínculo familiar, menos vulneráveis serão seus membros.
Também não pretendo sugerir condutas a outras autoridades; seria muita pretensão, uma estupidez mesmo, até porque se presume que quem ostenta esse título sabe de suas obrigações. Todavia, devo dizer – apesar do lugar comum que condenei há pouco! - que o combate à criminalidade passa, necessariamente, pela melhor alocação dos recursos públicos e, mais ainda, pelo fechamento da torneira do desperdício e da corrupção. E que é preciso sair dos gabinetes de olhos bem abertos, pois é impossível vencer o que não se vê. Como diria um professor de antropologia que mudou minha maneira de pensar o mundo, também é preciso descolorir as lentes.
Como as minhas limitações me impediram de encontrar outro final, peço desculpas para o caso de parecer politicamente incorreto (essa não é a intenção) e afirmo: o pior cego é aquele que não quer ver; se os olhos fingem não enxergar, o coração pode sentir – e muito.
Juiz Mário Márcio de Almeida Sousa
(Artigo escrito em março de 2006)

Carta de um cidadão indignado

Nesses meus vinte e poucos anos de vida, não me recordo de ter presenciado tamanha violência, tamanha falta de respeito pelos mais comezinhos valores, tamanha falta de respeito pela vida. Não sei se tal constatação se deve ao fato de que ela, a violência, nunca esteve tão perto de mim, como agora; não sei é porque eu cultivava a doce ilusão de que vivemos na pequena e (ex) pacata cidade de São Luís. Enfim, não sei se é porque, há pouco, fui vítima dessa violência (e isso é preciso reconhecer...), dessa violência que destrói lares, rouba sonhos, semeia a dor e fomenta o ódio – seja no ofensor, seja no ofendido.
Que me desculpem os partidários de idéias contrárias, mas não há como perdoar o “ofensor gratuito”, não há como perdoar aqueles que nos roubam o convívio dos entes queridos. Sinceramente, quisera eu ter a força (ou seria o desequilíbrio?) da doce Patrícia Abravanel; quisera eu ser crente o bastante para entender – e praticar – que é perdoando que se é perdoado. Sinceramente, quisera eu poder dizer: o que passou, passou; a vida continua; nós estamos melhores que eles... É verdade, a vida continua. Mas continua fragilizada, aviltada.
Por óbvio, nós, cidadãos de bem, não alimentamos o sonho de viver no paraíso. Em absoluto. Afinal, a evolução – ou seria a involução? – do homem não mais permite esse tipo de devaneio.
Não obstante, a Constituição Federal nos garante uma vida tranqüila e segura (é, aquela mesma Constituição que nossos “líderes” insistem em desrespeitar, em violar). Portanto, o que pedimos não são favores. A atuação governamental não pode se apresentar com um caráter de benesse, de gentileza, de modo algum. Mesmo porque essa mesma Constituição dispõe que o poder emana do povo e deve ser exercido em seu favor. Antes de qualquer coisa, a atuação governamental responsável e coerente é um dever inarredável, não um favor.
Para finalizar, permito-me dizer que nossos governantes devem adotar uma postura mais responsável - e de imediato -, sob pena de o povo, esse mesmo povo que reza pela saúde e pela vida dos ilustres e de seus pares, começar a rezar para que a violência atinja também essas ilustres pessoas, para – quem sabe? – alguma coisa ser feita.
Que DEUS me perdoe, mas, sinceramente, qualquer das opções eu desejo, desde que algo aconteça.
Juiz Mário Márcio de Almeida Sousa
(Artigo escrito no ano de 2001, quando o autor ainda era advogado militante)

O ovo e a galinha

Nos dias que correm, em todas as rodas de bate-papo, quando o assunto é política – principalmente a relativa à sucessão nos cargos eletivos – é comum dizer-se que “o povo não sabe votar, não sabe escolher seus representantes”. Fazendo ecoar antigos pensamentos, diz-se, até, que “cada povo tem o governo que merece”.
Sem embargos dos que assim pensam, ouso divergir dessas opiniões, cuja origem, imagino, remonta aos primórdios de nossa colonização, quando para parte dos indivíduos para cá enviados e para os que aqui já viviam era negado o beneplácito da “Coroa” em virtude de características ditas pessoais.
Ora, como é que o povo poderia saber escolher se, ainda hoje, lhe são apresentadas poucas opções? Como é que uma nação composta, em sua maioria, por famintos e por pessoas de pouca – ou nenhuma – instrução poderia discernir aqueles realmente comprometidos com a causa pública daqueles comprometidos apenas com a perpetuação de um estado de coisas que somente interessa às classes dominantes - sejam elas da “oposição” ou da “situação”? Enfim, como é que o povo poderia ser diferente se não lhe foi dada oportunidade para tanto? Impossível!
Um regime verdadeiramente democrático não se resume a dar ao povo o direito ao sufrágio, ao voto. O verdadeiro exercício da cidadania não consiste apenas em marcar um “x” em uma cédula ou apertar os botões de uma máquina. Antes de tudo, a concretização do Estado Democrático de Direito passa, necessariamente, pela criação de políticas públicas que, dentre outras coisas, permitam ao povo escolher seus representantes de acordo com seus reais anseios e necessidades.
Afigura-se absurdo e desrespeitoso obrigar o povo a escolher seus representantes somente entre aqueles considerados aptos pelas classes dominantes – repita-se, sejam elas da “oposição” ou da “situação” -, sobretudo porque essa oferta de possibilidades tem como finalidade precípua – e, às vezes, única – perpetuar o já citado estado de coisas.
É hora, portanto, de dar a todos o mesmo ponto de partida; é hora de dar a cada um o que lhe é devido; é hora de dar ao povo a chance de mudar sua história, seu destino.
Como nessa matéria não há consenso sobre o que é causa e o que é conseqüência, sobre o que veio primeiro – o ovo ou a galinha? –, que pelo menos se deixe aflorar a verdade segundo a qual o povo não é o responsável por suas mazelas.
* Juiz Mário Márcio de Almeida Sousa