24 de dezembro de 2008

Feliz Natal

Desejo aos leitores e leitoras do blog que tenham um Natal de Paz, Amor e Fraternidade.
E que essas Bênçãos se estendam por todo o ano de 2009.
Mário Márcio

26 de novembro de 2008

Uma imagem vale mais que mil palavras?


Eis uma foto do meu gabinete na segunda-feira, dia 24 de novembro de 2008.
“Felizmente”, os processos haviam sido despachados na semana anterior e “só” faltava assinar mandados, ofícios etc.
Caso alguém esteja estranhando o formato da mesa, explico: há duas varas no Fórum, mas nenhuma sala de audiência. Por isso, eu e o colega da 2ª Vara fazemos as audiências em nossos gabinetes.
E vamos levando.

20 de novembro de 2008

No texto abaixo, abordo, sucintamente, a polêmica gerada pela Lei nº 11.719/08 em torno do momento do recebimento da denúncia.

Os artigos 396 e 399 do CPP e o recebimento da denúncia

O Brasil é mesmo um país pródigo em contrariar a máxima segundo a qual “a lei não contém expressões inúteis”. E não foi diferente com a chamada “mini-reforma” do Código de Processo Penal, levada a efeito pelas leis 11.689, 11.690 e 11.719, todas de 2008.
Dentre as muitas alterações introduzidas por essas normas, decerto que uma das mais polêmicas diz com os artigos 396 e 399, cuja redação foi alterada pela Lei nº 11.719/08. Eis as respectivas transcrições:
“Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.”
“Art. 399. Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente.”
Desde a primeira hora, não poucos juristas afirmam que foram instituídos pela reforma dois momentos para o recebimento da peça acusatória: o primeiro logo após seu oferecimento (art.396); o outro, depois de apresentada a defesa preliminar (art.399). Já outros, como Lenio Luiz Streck, invocando argumentos de matriz constitucional (princípio da proibição de retrocesso, p.ex.), sustentam que “o dispositivo do art. 396 somente é constitucional se entendido no sentido de que, não rejeitada liminarmente a denúncia ou a queixa, o juiz recebê-la-á e ordenará a notificação do acusado para responder a acusação no prazo de dez dias, por escrito”.[1] Uma terceira linha, que será adiante sucintamente defendida, assevera haver apenas um momento para o recebimento da inicial da acusação: aquele do art.396 do CPP.
É bem verdade que toda essa celeuma não advém de mera “litigância acadêmica”; sua origem está, sem dúvida, no lamentável equívoco da redação do artigo 399. Contudo, essa erronia não autoriza as sobreditas interpretações.
Com efeito, não se afigura lógico que, doravante, uma mesma denúncia seja recebida por duas vezes, sobretudo porque não é isso que se pode extrair da nova sistemática. Ademais, essa duplicidade implicaria também na desnecessária discussão acerca do momento de interrupção da prescrição – atente-se que não houve alteração no artigo 117 do Código Penal.
Igualmente equivocado é afirmar que o legislador pretendeu instituir um contraditório anterior ao recebimento da denúncia, a exemplo do que já ocorre com a Lei nº 8.038/90 e a Lei nº 11.343/06. Como bem lembra Jacinto Coutinho, a Câmara dos Deputados alterou o Projeto de Lei nº 4.701/01, que deu origem à Lei nº 11.719/08, para inserir no artigo 396 a expressão “recebê-la-á”. [2] Logo, forçoso é concluir que, se desejasse criar uma fase pré-processual, assim teria feito o Parlamento. Se não o fez é porque essa não era sua intenção.
Sem embargos, a solução para o problema está na interpretação sistemática. Ou seja, os dispostvos não podem ser vistos como normas isoladas, cada um a disciplinar institutos jurídicos também estanques.
Então, se, nos termos do art.393, o processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado e, a teor do art.397, após a resposta o juiz deverá absolvê-lo sumariamente quando verificar qualquer das hipóteses nele previstas, é evidente que a denúncia somente pode e deve ser recebida num único momento, qual seja aquele do artigo 396 do CPP. Afinal, só é possível absolver quem já está sendo processado. Por outro lado, caso se aceitasse a teoria do duplo recebimento ou do recebimento somente num segundo momento (art.399), ter-se-ia que concluir não pela absolvição, mas pela rejeição da peça acusatória. E não é isso que ocorre.
Avançando nessa linha, Guilherme de Souza Nucci afirma que “inexistem ‘dois recebimentos’ da peça acusatória, nem é dado à parte (acusação ou defesa) qual deles é o mais conveniente. Não deve o juiz, por outro lado, receber outra vez a peça acusatória, após ler os argumentos da defesa prévia. Ao contrário, deve mencionar que, lidos os referidos argumentos defensivos, inexiste motivo para absolvição sumária, portanto, designa audiência de instrução e julgamentos, intimando-se o réu”.[3]
Como se vê, não há falar-se em duplo recebimento da denúncia; tampouco em recebimento apenas na fase do art.399 do CPP.
Em verdade, a denúncia deve ser recebida somente na fase do art.396 do Código de Processo Penal. E o artigo 399 do Código de Processo Penal, por sua vez, deve ser lido da seguinte forma: “na fase do art.396, caso não seja rejeitada a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente”.
[1] A jurisdição constitucional e o “duplo juízo de admissibilidade” do artigo 396 do CPP: uma solução hermenêutica. Disponível em www.leniostreck.com.br.
[2] Solução para o absurdo legal e técnico do novo art. 396 do CPP. Jornal “O Estado do Paraná”, Caderno Direito e Justiça de 20/09/2008
[3] Código de Processo Penal Comentado, 8ª ed., p.720.

6 de outubro de 2008

Encerradas as eleições na grande maioria dos municípios, publico um texto no qual abordo, sucintamente, as contradições desse nosso Brasil.

O que é democracia, afinal?

A idéia de escrever este artigo me veio por volta das oito horas de hoje (04 de outubro de 2008 - véspera das eleições), no município de Anajatuba, onde há meses atuo como juiz eleitoral. Durante todo o dia, entre um preparativo e outro para a grande festa da democracia, como diz um jurista pelo qual tenho grande simpatia e respeito, apliquei-lhe retalhos dos meus pensamentos. Contudo, penso mais prudente publicá-lo somente depois do pleito, para diminuir o risco de lhe atirarem a pecha de “político-partidário”. Sinceramente, isso não seria justo, pois ele é apenas político.
Aproximadamente uma hora antes desse lampejo literário, comunicava-me eu, via rádio, com o chefe do cartório, a fim de saber se estava tudo certo para a partida de uma integrante da nossa equipe, encarregada de um posto avançado de transmissão (dos dados da urna eletrônica) a ser instalado a apenas doze quilômetros da sede do município, num povoado com o pitoresco nome Teso do Bom Prazer. Na bagagem, além de muita coragem e elevado compromisso com seu trabalho (em nenhum momento ela cogitou desistir ou se mostrou aborrecida), a jovem levaria consigo um computador portátil, um celular via satélite, cédulas de votação, duas urnas eletrônicas e uma de lona. Além, é claro, de protetor solar, hidratante, cremes etc.
Quem tem pouco conhecimento da realidade de um Estado pobre como o Maranhão deve estar se perguntando: o que isso tem demais? E eu respondo: nada. Tem de menos!
É que, para vencer esses modestos doze quilômetros, que muitos engravatados de gabinetes percorrem diariamente em parques, academias e até mesmo em suas esteiras tecnológicas, seria – e de fato foi – necessário se aventurar numa canoa, montar num jumento e caminhar muito, muito mesmo. Em alguns pontos até na lama! Quando fora da pequena embarcação, o material seria – e foi – carregado nas cabeças de homens especialmente contratados para a tarefa. Ah! Quase esqueci do guia...
Volto, então, ao título deste artigo: o que é democracia, afinal?
Dias antes da eleição, eu mesmo cheguei a comentar que garantir o exercício do direito (?) ao voto às pessoas do Teso do Bom Prazer era um grande feito da Justiça Eleitoral. E é mesmo.
Hoje, revendo o que disse, acrescento que não podemos deixar que essa passageira sensação de dever cumprido inebrie nosso senso crítico, encobrindo a triste e cruel realidade: há pelo Brasil afora muitos e muitos Tesos, onde a bela expressão “cidadania” representa apenas o direito (?!) ao voto. Nada mais. O Poder Público quase nunca os alcança - quase...
Valho-me aqui de outro texto meu, intitulado o “O ovo e a galinha”, para afirmar que um regime verdadeiramente democrático não se resume a dar ao povo o direito ao sufrágio, ao voto. O verdadeiro exercício da cidadania não consiste apenas em marcar um “x” em uma cédula ou apertar os botões de uma máquina. Antes de tudo, a concretização do Estado Democrático de Direito passa, necessariamente, pela criação de políticas públicas que, dentre outras coisas, permitam ao povo escolher seus representantes de acordo com seus reais anseios e necessidades. E mais ainda que, uma vez eleitos, esses representantes possibilitem uma vida digna à nossa gente, ou que pelos menos tentem fazê-lo.
Já é noite. Acaba de chegar mais uma denúncia de compra de votos. Tenho que sair.
Mas não sem antes reiterar: o que é democracia, afinal?
Ah! Obrigado, Eva.
Em tempo: felizmente, todos os nossos esforços foram recompensados, especialmente os da nossa intrépida companheira. Somente duas urnas eletrônicas apresentaram problemas e foram substituídas. Às 17h12min os votos do Teso do Bom Prazer já estavam totalizados. A totalização das 77 seções do município de Anajatuba se encerrou às 19h03min. Ufa!

27 de setembro de 2008

Mandado de Segurança – Servidores - Transferência - Sentença - Concessão

Caríssimos leitores,
A partir de hoje, o blog entre em uma nova fase (assim espero). Tentarei mantê-lo com textos novos. E também passarei a publicar algumas decisões minhas. Quem tiver interesse pode mandar material para publicação.
Na estréia dessa nova fase (!), publico uma sentença que proferi ainda na comarca de Matinha/MA. Trata-se de um mandado de segurança impetrado por servidores públicos municipais que foram removidos de seus postos de trabalho.
A decisão aborda dois pontos que reputo da maior importância, sobretudo porque, cada vez mais, o Poder Judiciário tem sido chamado a avaliar atos dos Poderes Executivo e Legislativo: controle judicial da Administração Pública e direitos fundamentais.
O tema muito me interessa. Tanto que sobre ele escrevi na monografia de conclusão da minha pós-graduação em Direito Constitucional.
Aguardo comentários.
Mário Márcio

MANDADO DE SEGURANÇA N0 147/05
Impetrantes: ELIELMA NUNES GALVÃO E OUTROS
Advogado: RANUFO GOMES
Impetrado: PREFEITO MUNICIPAL DE MATINHA/MA
Promotora de Justiça: EVELINE BARROS MALHEIROS
Juiz de Direito: MÁRIO MÁRCIO DE ALMEIDA SOUSA
SENTENÇA
Trata-se de Mandado de Segurança, com pedido de liminar, impetrado por Elielma Nunes Galvão, Anastácia Cunha, Maria bárbara cunha Martins, Marly Aroucha Belfort, Maria de Jesus Alves Souza, Sócrates Cutrim Araújo, Maria Cristina Mota Chagas, Almirana Furtado Costa, Leiliane Duarte Mouzinho, Eriones Melônio Silva, Maria da Conceição Pereira dos Santos, Antônia Luciana de Ribamar Trindade Silva e Lucilene dos Santos Mendonça, contra atos do Excelentíssimo Senhor Prefeito do município de Matinha/MA.
Na inicial, as impetrantes consignaram, em síntese, que foram “sumária e arbitrariamente” removidos de seus postos de trabalho para outros que distam até trinta quilômetros de suas residências - em alguns casos -, “sem que houvesse qualquer vaga nos locais para onde foram removidos, e, além disso, todos os locais onde originariamente ocupavam os impetrantes, foram preenchidos por pessoas contratadas pelo Excelentíssimo Senhor Prefeito Municipal de Matinha/MA, sem prestarem concurso público, o que prova que os mesmos foram removidos meros e exclusivos motivos políticos, bem como por inafastável abuso de poder” (sic).
Com base em tais argumentos, formularam os pedidos de praxe e pugnaram pela concessão de liminar, a fim de que fossem suspensos os atos administrativos que resultaram em suas remoções. No mérito, pediram a concessão da segurança.
Vários documentos foram juntados aos autos.
Deferiu-se a liminar.
A autoridade coatora prestou as informações que lhe foram requisitadas e o município de Matinha apresentou defesa.
Manifestou-se o Ministério Público Estadual pela concessão da segurança requerida.
É o que importa relatar. Passo a decidir.
Tendo-se em vista que as impetrantes buscam nesta via mandamental proteger direitos fundamentais e ainda que, em última análise, as disposições constitucionais consagradoras desses direitos são dirigidas ao Poder Público e, também, que cabe ao Judiciário a salvaguarda do ordenamento jurídico, não excede que se teçam, antes do exame do mérito, comentários sobre o controle judicial dos atos administrativos.
Ao praticar os atos que o ordenamento jurídico lhe faculta ou impõe, a Administração Pública não pode ladear os parâmetros estabelecidos pelas normas que criam ou protegem direitos fundamentais. As normas jurídicas (das quais são espécies os princípios e as regras) devem, por quem quer que seja, sempre ser interpretadas e aplicadas segundo esses direitos e em função deles, mesmo porque é por eles e para eles que existe a lei e o próprio Estado.
Quando isso não ocorre, isto é, quando o Estado não pauta sua conduta nas regras e nos princípios insculpidos no ordenamento jurídico brasileiro, o próprio sistema normativo, mais precisamente os artigos 20, 50, inciso XXXV, e 37, caput, da Constituição Federal, assegura que o Poder Judiciário pode e deve atuar para restabelecer a legalidade .
Noutros termos: há casos em que o Poder Judiciário pode e deve intervir para resguardar o primado da legalidade e - por que não dizer? – a própria essência do Estado Democrático de Direito, que passa, necessariamente, pelo respeito ao conjunto normativo que lhe serve de alicerce. E isso sem que se possa cogitar de afronta aos princípios da harmonia e da independência entre os Poderes da República, porquanto se trata, apenas e tão-somente, de não esquivar o Judiciário de sua missão precípua: aplicar a lei ao caso concreto e distribuir Justiça.
Conforme ensina Jessé Torres Pereira Júnior , o Poder Judiciário tem legitimidade para agir – desde que provocado, é claro! – sempre que estiverem em jogo direitos fundamentais, haja vista que no sistema constitucional brasileiro de controle da Administração Pública (autocontrole, controle parlamentar, controle popular e controle judicial) lhe “cabe dar a última palavra sobre se as normas expedidas e os atos praticados nos mais recônditos escaninhos da ordem jurídica se compadecem, ou não, com os princípios e normas do sistema”
E aos magistrados, frise-se, cabe relevante papel sempre que o exercício de direitos fundamentais encontrar óbice na ação ou na omissão da Administração Pública. Afinal, são eles quem tem autoridade e legitimidade para garantir ou restabelecer o respeito às normas do país, notadamente àquelas relativas aos direitos fundamentais.
Especificamente em relação a esses direitos – os fundamentais -, Ingo Wolfgang Sarlet , fazendo referência a Gomes Canotilho, chega a afirmar que “a vinculação dos órgãos judiciais aos direitos fundamentais manifesta-se, por um lado, por intermédio de uma constitucionalização da própria organização dos tribunais e do procedimento judicial, que, além de deverem ser compreendidos à luz dos direitos fundamentais, por estes são influenciados, expressando-se, de outra parte, na vinculação do conteúdo dos atos jurisdicionais aos direitos fundamentais, que, neste sentido, atuam como autênticas medidas de decisão material, determinando e direcionando as decisões judiciais”.
Negar-se a possibilidade de haver controle judicial sobre a Administração Pública seria o mesmo que destituir o Poder Judiciário de sua missão precípua e negar validade ao mandamento constitucional segundo o qual a lei não excluirá da apreciação judicial lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5º, XXXV).
Equivocam-se sobremaneira aqueles que afirmam não ter o Poder Judiciário legitimidade para controlar a Administração Pública. Na precisa lição de Aury Lopes Jr. “a legitimidade democrática do juiz deriva do caráter democrático da Constituição, e não da vontade da maioria. O juiz tem nova posição dentro do Estado de Direito e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, e seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. É uma legitimidade democrática, fundada na garantia dos direitos fundamentais e baseada na democracia substancial”.
Forte nesse entendimento foi que assentei, nos autos da Ação Cautelar 213/04, proposta neste juízo contra o vizinho município de Olinda Nova do Maranhão, que a interpretação correta e sistemática dos artigos 20, 50, inciso XXXV, e 37, caput, da Carta Política brasileira, bem assim de todos os outros com os quais eles guardam pertinência -, conduz, sem qualquer resquício de dúvida, à ilação de que o Poder Judiciário, uma vez provocado por quem detenha legitimidade para tanto, pode e deve atuar sempre que a Administração Pública não pautar sua conduta nos princípios e regras insculpidos no ordenamento jurídico nacional.
Não se trata aqui - e nem se tratou acolá – de admitir a interferência pura e simples de um Poder no outro. Nada disso. Cuida-se, em verdade, do legítimo exercício do poder-dever que tem o Judiciário de controlar a constitucionalidade/legalidade de atos administrativo, sobretudo quando eles produzem efeitos extremamente significativos para a própria municipalidade e para os servidores.
A separação dos Poderes não pode, em absoluto, servir de suporte para a prática de atos atentatórios ao Estado Democrático de Direito, tampouco para excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Malgrado não tenha relação direta com o presente caso, não sobeja mencionar que igualmente incapaz de impedir o controle ora defendido é a reserva do possível, que muitas vezes não passa de retórica. Acerca disso, confira-se o magistério de Américo Bedê Freire Jr. :
“Será que é possível falar em falta de recursos para a saúde quando existem, no mesmo orçamento, recursos com propaganda de gorveno? Antes de os finitos recursos do Estado se esgotarem para os direitos fundamentais, precisam estar esgotados em áreas não prioritárias do ponto de vista constitucional e não do detentor do poder.
Por outro lado, é preciso observar que, se os recursos não são suficientes para cumprir integralmente a política pública, não significa de per si que são insuficientes para iniciar a política pública.
Nada impede que se inicie a materialização dos direitos fundamentais e, posteriormente, se verifique como podem ser alocados novos recursos. O que não é razoável é simplesmente o Executivo ou legislativo descumprir a Constituição e a decisão judicial, alegando simplesmente que não tem recursos para tanto.”
Em que pesem todas essas ponderações, não se pode deixar de reconhecer que a atuação da autoridade judiciária deve ser absolutamente necessária e adequada, não podendo ir além de garantir o exercício do direito invocado.
Feitas essas consideração, já é tempo de dizer que, dados os fatos narrados na inicial e sua disciplina legal e constitucional, não tenho dúvidas de que se está diante de um caso que comporta a intervenção do Judiciário, porquanto em jogo direitos fundamentais (CF, art.5º, XXXV). Também já é hora de reconhecer que merece acolhida a pretensão das impetrantes.
Diferentemente do que foi consignado nas informações e na defesa juntadas aos autos, as impetrantes lograram, sim, demonstrar que os atos impugnados malferiram direitos seus, os quais, dado o seu caráter fundamental, são líquidos e certos. São eles: o direito à preservação da dignidade da pessoa humana e o fruir de uma Administração Pública pautada, dentre outros, nos princípios da legalidade e publicidade (CF arts.1º, III, e 37, caput).
Imperioso é reconhecer que o administrador público goza, em certos casos, de discricionariedade para atuar. Negar-se esse poder – o discricionário - seria incorrer em grave equívoco. Isso não significa, todavia, que o agente público tudo pode, principalmente quando em discussão direitos fundamentais. Se bem me lembro da singela lição dos bancos da faculdade de direito na Universidade Federal do Maranhão, “o cidadão pode fazer aquilo que não é vedado por lei; já a Administração Pública somente pode aquilo que a lei permite”.
Sobre esse ponto, confira-se, ainda uma vez, a lição de Ingo Sarlet :
“O que importa é a constatação de que os direitos fundamentais vinculam os órgãos administrativos em todas as suas formas de manifestação e atividades, na medida em que atuam no interesse público, no sentido de um guardião e gestor da coletividade.
No que diz com a relação com relação entre os órgãos da administração e os direitos fundamentais, no qual vigora o princípio da constitucionalidade imediata da administração, a vinculação aos direitos fundamentais significa que os órgãos administrativos devem executar apenas as leis que àqueles sejam conformes, bem como executar estas leis de forma constitucional, isto é, aplicando-as e interpretando-as em conformidade com os direitos fundamentais. A não-observância destes postulados poderá, por outro lado, levar à invalidação judicial dos atos administrativos contrários aos direitos fundamentais...”
Nestes autos, é evidente que a autoridade coatora exercitou seu poder discricionário. Contudo, fê-lo afrontando os princípios da legalidade e da publicidade, pois, conquanto se trate de atos discricionários, cumpria-lhe explicitar as razões e os motivos justificadores das transferências. Mas houve, apenas, mera referência à “necessidade do serviço” e ao “interesse da Administração Pública Municipal”. E isso não basta para fundamentar e justificar ações de tamanha envergadura e que, por isso mesmo, importaram em pesados ônus para as impetrantes, que, de um súbito, tiveram suas rotinas completamente alteradas, com reflexos também de ordem financeira (despesas para deslocamento).
Com efeito, equivocam-se aqueles que afirmam ser o artigo 93, IX, da Constituição Federal aplicável apenas à atividade jurisdicional. Isso porque, como corolário do princípio da legalidade – que limita sua atuação aos termos da lei -, o administrador público também interpreta o ordenamento jurídico quando pratica os atos que lhe competem. Porém, quando o faz sem apresentar os fundamentos de sua decisão, malfere tanto a regra (CF, art.93, IX) quanto o princípio constitucional (legalidade), como ocorreu aqui.
Cumpre registrar, ainda, que o princípio da publicidade não impõe apenas a divulgação dos atos da Administração Pública, mas também que tais atos ostentem clareza e fundamentação, em ordem a permitir e garantir que seu conteúdo seja conhecido e compreendido pelos administrados, notadamente aqueles diretamente interessados.
Como bem lembra o já referido Jessé Torres Pereira Júnior , “foi Digo de Figueiredo Moreira Neto quem sustentou que, a partir dela , todos os atos jurídicos dos poderes públicos teriam de revelar os seus motivos, mesmo aqueles em que a lei reservasse espaços à discrição administrativa. Vale dizer: todo ato administrativo deve deixar expressas, no seu instrumento veiculador (os consideranda de um decreto ou ato normativo, por exemplo), ou nos autos do processo administrativo em que o ato foi editado, as razões de fato e de direito que levaram a autoridade competente a decidir daquele modo, naquelas circunstâncias, mediante aqueles meios”.
Por fim, restar asseverar que as portarias combatidas também ofenderam o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que, devido à falta de justificativa idônea e influenciados por uma lamentável – mas não raro correta - impressão de que atos dessa natureza não passam de vendeta contra opositores políticos, as impetrantes experimentaram a angústia de pensar que estavam sendo vítimas de igual perseguição – o que, neste caso, decerto não corresponde à verdade dos fatos.
Como se vê, as remoções das impetrantes devem ser declaradas nulas, porquanto malferiram direitos fundamentais – e, por óbvio, líquidos e certos.
Assim sendo, confirmo a liminar anteriormente deferida e concedo a segurança pleiteada pelas impetrantes, para o fim anular as portarias que resultaram em suas remoções, com seu conseqüente retorno aos locais onde prestavam serviços.
Não há custas processuais ou honorários advocatícios a pagar (STF, Súmula 512).
Expirado o prazo legal sem recurso voluntário, subam os autos ao E. Tribunal de Justiça do Maranhão.
Façam-se as intimações necessárias.
Publique-se. Registre-se.
Matinha/MA, 23 de janeiro de 2006.
Juiz Mário Márcio de Almeida Sousa
Titular da Comarca de Matinha/MA