26 de fevereiro de 2009

Controle judicial da Administração Pública e direitos fundamentais

Publico, a seguir, sentença que proferi em mandado de segurança.
Há outra semelhante no blog.
A publicação se justifica porque fiz referência ao processo numa decisão de outro feito.
O tema é recorrente e enseja muita discussão.
Espero que seja assim também neste espaço.
MANDADO DE SEGURANÇA N0 170/05
Impetrantes: JOZELIA FERREIRA CUTRIM E OUTROS
Advogados: HÉLIO BEZERRA DA COSTA JÚNIOR E OUTRO
Impetrado: PREFEITO MUNICIPAL DE MATINHA/MA
Promotora de Justiça: EVELINE BARROS MALHEIROS
Juiz de Direito: MÁRIO MÁRCIO DE ALMEIDA SOUSA

SENTENÇA
Trata-se de Mandado de Segurança, com pedido de liminar, impetrado por Jozelia Ferreira Cutrim, Ubiratania Serra Silva, Jadirson Mendonça Soeiro, José Carlos Silva Lindoso, Sheila Regina Mendes Lima e Luana Maria Alves Cutrim, contra atos do Excelentíssimo Senhor Prefeito do Município de Matinha/MA.
Na inicial, os impetrantes alegaram em síntese que, malgrado sua condição de servidores públicos municipais concursados e estáveis, foram demitidos pela autoridade dita coatora, com o argumento de que suas nomeações teriam ocorrido de forma irregular e que não teriam sido encontrados, nos arquivos da municipalidade, documentos que legitimassem seu ingresso no serviço público.
Com base nessas afirmações, formularam os pedidos de praxe e pugnaram pela concessão de liminar, a fim de que fossem suspensos os atos administrativos que resultaram em suas exonerações. No mérito, pediram a concessão da segurança.
Vários documentos foram juntados aos autos.
Deferiu-se a liminar.
A autoridade coatora prestou as informações que lhe foram requisitadas e o município de Matinha apresentou defesa.
Manifestou-se o Ministério Público Estadual pela concessão da segurança.
É o que importa relatar. Passo a decidir.
Tendo-se em vista que os impetrantes buscam nesta via mandamental proteger direitos fundamentais e ainda que, em última análise, as disposições constitucionais consagradoras desses direitos são dirigidas ao Poder Público e, também, que cabe ao Judiciário a salvaguarda do ordenamento jurídico, não excede que se teçam, antes do exame do mérito, comentários sobre o controle judicial dos atos administrativos.
Ao praticar os atos que o ordenamento jurídico lhe faculta ou impõe, a Administração Pública não pode ladear os parâmetros estabelecidos pelas normas que criam ou protegem direitos fundamentais. As normas jurídicas (das quais são espécies os princípios e as regras) devem, por quem quer que seja, sempre ser interpretadas e aplicadas segundo esses direitos e em função deles, mesmo porque é por eles e para eles que existe a lei
[1] e o próprio Estado.
Quando isso não ocorre, isto é, quando o Estado não pauta sua conduta nas regras e nos princípios insculpidos no ordenamento jurídico brasileiro, o próprio sistema normativo, mais precisamente os artigos 2º, 5º, inciso XXXV, e 37, caput, da Constituição Federal, assegura que o Poder Judiciário pode e deve atuar para restabelecer a legalidade
[2].
Noutros termos: há casos em que o Poder Judiciário pode e deve intervir para resguardar o primado da legalidade e - por que não dizer? – a própria essência do Estado Democrático de Direito, que passa, necessariamente, pelo respeito ao conjunto normativo que lhe serve de alicerce. E isso sem que se possa cogitar de afronta aos princípios da harmonia e da independência entre os Poderes da República, porquanto se trata, apenas e tão-somente, de não esquivar o Judiciário de sua missão precípua: aplicar a lei ao caso concreto e distribuir Justiça.
Conforme ensina Jessé Torres Pereira Júnior, o Poder Judiciário tem legitimidade para agir – desde que provocado, é claro! – sempre que estiverem em jogo direitos fundamentais, haja vista que no sistema constitucional brasileiro de controle da Administração Pública (autocontrole, controle parlamentar, controle popular e controle judicial) lhe “cabe dar a última palavra sobre se as normas expedidas e os atos praticados nos mais recônditos escaninhos da ordem jurídica se compadecem, ou não, com os princípios e normas do sistema”
[3]
E aos magistrados, frise-se, cabe relevante papel sempre que o exercício de direitos fundamentais encontrar óbice na ação ou na omissão da Administração Pública. Afinal, são eles quem tem autoridade e legitimidade para garantir ou restabelecer o respeito às normas do país, notadamente àquelas relativas aos direitos fundamentais.
Especificamente em relação a esses direitos – os fundamentais -, Ingo Wolfgang Sarlet, fazendo referência a Gomes Canotilho, chega a afirmar que “a vinculação dos órgãos judiciais aos direitos fundamentais manifesta-se, por um lado, por intermédio de uma constitucionalização da própria organização dos tribunais e do procedimento judicial, que, além de deverem ser compreendidos à luz dos direitos fundamentais, por estes são influenciados, expressando-se, de outra parte, na vinculação do conteúdo dos atos jurisdicionais aos direitos fundamentais, que, neste sentido, atuam como autênticas medidas de decisão material, determinando e direcionando as decisões judiciais”.
[4]
Negar-se a possibilidade de haver controle judicial sobre a Administração Pública seria o mesmo que destituir o Poder Judiciário de sua missão precípua e negar validade ao mandamento constitucional segundo o qual a lei não excluirá da apreciação judicial lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5º, XXXV).
Equivocam-se sobremaneira aqueles que afirmam não ter o Poder Judiciário legitimidade para controlar a Administração Pública. Na precisa lição de Aury Lopes Jr. “a legitimidade democrática do juiz deriva do caráter democrático da Constituição, e não da vontade da maioria. O juiz tem nova posição dentro do Estado de Direito e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, e seu fundamento é unicamente a intangibilidade dos direitos fundamentais. É uma legitimidade democrática, fundada na garantia dos direitos fundamentais e baseada na democracia substancial”.
[5]
Forte nesse entendimento foi que assentei, nos autos da Ação Cautelar 213/04, proposta neste juízo contra o vizinho município de Olinda Nova do Maranhão, que a interpretação correta e sistemática dos artigos 2º, 5º, inciso XXXV, e 37, caput, da Carta Política brasileira, bem assim de todos os outros com os quais eles guardam pertinência, conduz, sem qualquer resquício de dúvida, à ilação de que o Poder Judiciário, uma vez provocado por quem detenha legitimidade para tanto, pode e deve atuar sempre que a Administração Pública não pautar sua conduta nos princípios e regras insculpidos no ordenamento jurídico nacional.
Não se trata aqui - e nem se tratou acolá – de admitir a interferência pura e simples de um Poder no outro. Nada disso. Cuida-se, em verdade, do legítimo exercício do poder-dever que tem o Judiciário de controlar a constitucionalidade/legalidade de atos administrativo, sobretudo quando eles produzem efeitos extremamente significativos para a própria municipalidade e para os servidores.
A separação dos Poderes não pode, em absoluto, servir de suporte para a prática de atos atentatórios ao Estado Democrático de Direito, tampouco para excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Malgrado não tenha relação direta com o presente caso, não sobeja mencionar que igualmente incapaz de impedir o controle ora defendido é a reserva do possível, que muitas vezes não passa de retórica. Acerca disso, confira-se o magistério de Américo Bedê Freire Jr.:
“Será que é possível falar em falta de recursos para a saúde quando existem, no mesmo orçamento, recursos com propaganda de gorveno? Antes de os finitos recursos do Estado se esgotarem para os direitos fundamentais, precisam estar esgotados em áreas não prioritárias do ponto de vista constitucional e não do detentor do poder.
Por outro lado, é preciso observar que, se os recursos não são suficientes para cumprir integralmente a política pública, não significa de per si que são insuficientes para iniciar a política pública.
Nada impede que se inicie a materialização dos direitos fundamentais e, posteriormente, se verifique como podem ser alocados novos recursos. O que não é razoável é simplesmente o Executivo ou legislativo descumprir a Constituição e a decisão judicial, alegando simplesmente que não tem recursos para tanto.”
[6]
Em que pesem todas essas ponderações, não se pode deixar de reconhecer que a atuação da autoridade judiciária deve ser absolutamente necessária e adequada, não podendo ir além de garantir o exercício do direito invocado.
Feitas essas consideração, já é tempo de dizer que, dados os fatos narrados na inicial e sua disciplina legal e constitucional, não tenho dúvidas de que se está diante de um caso que comporta a intervenção do Judiciário, porquanto em jogo direitos fundamentais (CF, art.5º, XXXV). Também já é hora de reconhecer que merece acolhida a pretensão dos impetrantes.
Diferentemente do que foi consignado nas informações e na defesa juntadas aos autos, os impetrantes lograram, sim, demonstrar que os atos impugnados malferiram direitos seus, os quais são fundamentais, líquidos e certos. São eles: o direito à preservação da dignidade da pessoa humana, o de fruir de uma Administração Pública pautada, dentre outros, nos princípios da legalidade e publicidade, o direito à ampla defesa e ao contraditório, com os meios e recursos a ela inerentes, e o direito que têm os servidores públicos estáveis de somente perderem seus cargos através de processos administrativos regulares (CF arts.1º, 5º, LV, III, 37, caput, 41, § 1º, II).
Com efeito, imperioso é reconhecer que a Administração Pública pode revogar e/ou anular atos por ela praticados, sobretudo quando estiveram em confronto com a lei. Todavia, isso não significa que o Poder Público tudo pode, principalmente quando em discussão direitos fundamentais. Se bem me lembro da singela lição dos bancos da faculdade de direito na Universidade Federal do Maranhão, “o cidadão pode fazer aquilo que não é vedado por lei; já a Administração Pública somente pode aquilo que a lei permite”.
Nestes autos, resta evidente que os impetrantes foram exonerados sem o prévio e devido processo administrativo e por meio de atos desprovidos de fundamentação.
Ora, a exoneração de servidores públicos estáveis, por sua gravidade, exige ato administrativo formal e materialmente perfeito (principalmente no que tange à fundamentação) e prova robusta de irregularidades e ilegalidades, prova essa a ser apurada em procedimento próprio, no curso do qual deve ser assegurado aos diretamente envolvidos o direito ao contraditório e à ampla defesa. Contudo, repita-se, nada disso ocorreu aqui, numa flagrante violação ao disposto nos artigos 5º, inciso LV, e 41, § 1º, da Constituição Federal e ao enunciado da Súmula 20 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “é necessário processo administrativo, com ampla defesa, para demissão de funcionário admitido por concurso”.
A autoridade coatora afrontou ainda os princípios da legalidade e da publicidade, porquanto lhe cumpria explicitar as razões e os motivos justificadores de sua ação e, por óbvio, apontar quais as normas jurídicas malferidas, bem assim aquelas que serviram de suporte para a exoneração dos impetrantes. Mas houve, apenas, mera referência a “inúmeras irregularidades” e a uma suposta inexistência, nos arquivos da municipalidade, de documentos exigidos pelo edital do concurso. E isso não basta para fundamentar e justificar ações de tamanha envergadura, sobretudo porque se deve presumir que toda a documentação exigida foi oportunamente apresentada, pois, do contrário, os impetrantes não estariam exercendo seus cargos. A prova do oposto cabia à Administração – por incrível que pareça, à mesma Administração que admitiu e sempre remunerou os impetrantes e hoje quer demiti-los! Não se pode olvidar: os homens e mulheres públicos passam, a Administração Pública fica!
Ainda nessa seara, vale ressaltar o equívoco daqueles que afirmam ser o artigo 93, IX, da Constituição Federal aplicável apenas à atividade jurisdicional. Isso porque, como corolário do princípio da legalidade – que limita sua atuação aos termos da lei -, o administrador público também interpreta o ordenamento jurídico quando pratica os atos que lhe competem. Porém, quando o faz sem apresentar os fundamentos de sua decisão, malfere tanto a regra (CF, art.93, IX) quanto o princípio constitucional (legalidade), como ocorreu aqui.
Cumpre gizar, ainda, que o princípio da publicidade não impõe apenas a divulgação dos atos da Administração Pública, mas também que tais atos ostentem clareza e fundamentação, em ordem a permitir e garantir que seu conteúdo seja conhecido e compreendido pelos administrados, notadamente aqueles diretamente interessados.
Como bem lembra o já referido Jessé Torres Pereira Júnior, “foi Digo de Figueiredo Moreira Neto quem sustentou que, a partir dela
[7], todos os atos jurídicos dos poderes públicos teriam de revelar os seus motivos, mesmo aqueles em que a lei reservasse espaços à discrição administrativa. Vale dizer: todo ato administrativo deve deixar expressas, no seu instrumento veiculador (os consideranda de um decreto ou ato normativo, por exemplo), ou nos autos do processo administrativo em que o ato foi editado, as razões de fato e de direito que levaram a autoridade competente a decidir daquele modo, naquelas circunstâncias, mediante aqueles meios”.[8]
Por fim, resta asseverar que as portarias combatidas também ofenderam o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que, devido à falta de justificativa idônea e influenciados por uma lamentável – mas não raro correta - impressão de que atos dessa natureza não passam de vendeta contra opositores políticos, os impetrantes experimentaram a angústia de pensar que estavam sendo vítimas de igual perseguição – o que, neste caso, decerto não corresponde à verdade dos fatos.
Como se vê, as exonerações dos impetrantes devem ser declaradas nulas, porquanto malferiram direitos fundamentais, líquidos e certos.
Assim sendo, confirmo a liminar anteriormente deferida e concedo a segurança pleiteada pelos impetrantes, para o fim anular as portarias que resultaram em suas exonerações.
Não há custas processuais ou honorários advocatícios a pagar (STF, Súmula 512).
Expirado o prazo legal sem recurso voluntário, subam os autos ao E. Tribunal de Justiça do Maranhão.
Façam-se as intimações necessárias.
Publique-se. Registre-se.
Matinha/MA, 27 de janeiro de 2006.

Juiz Mário Márcio de Almeida Sousa
Titular da Comarca de Matinha/MA
[1] O vocábulo lei é empregado nesta decisão em sentido amplo.
[2] Diga-se o mesmo da expressão legalidade.
[3] Controle judicial da Administração Pública: da legalidade estrita à lógica do razoável. 1ª ed., 2005, Editora Fórum, p.27.
[4] A eficácia dos direitos fundamentais. 5ª ed. rev. atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 368.
[5] Introdução crítica ao processo penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p.73.
[6] O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. – (Coleção temas fundamentais de direito; v.1), p.74.
[7] Refere-se o autor à Constituição Federal de 1988.
[8] Op.cit. p.51.

3 comentários:

Anônimo disse...

Colega, estamos sentido falta da atualização do blog

maria da gloria perez delgado sanches disse...

Excelente blog. Já sou sua seguidora.

Rudi Maria Cristani disse...

Olá Dr.Mário Márcio Bom dia/tarde.
Concordo com a SrªMaria a Glória, também já sou seguidora de seu blog. Não esqueça que é com V.Exas.que aprimoramos nossos conhecimentos jurídicos e sociais.
Sou seguidora do seu Colega Carlos (Z) de Zamith.
Mas Dr. está bem difícil nviar comentários, talvez seja a minha pouca experiência el lidar com a máquina. Saudadações Coloradas.